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31 Agosto, 2020

A AQUISIÇÃO DE TERRAS POR ESTRANGEIROS NO BRASIL – CENÁRIO ATUAL E PERSPECTIVAS

O art. 170, I, da Constituição Federal de 1988 estabelece como primeiro princípio da ordem econômica e financeira brasileira a soberania nacional. O dispositivo o faz para garantir a independência do país em detrimento de intervenções econômicas estrangeiras indevidas.

Discussão muito importante nesse contexto, portanto, é acerca da aquisição de terras no Brasil por estrangeiros. O controle das terras rurais, em geral e especialmente as de fronteira, é estratégico não só para garantir a soberania brasileira na economia nacional e internacional, mas também para garantir sua própria defesa nacional. Por isso, então, que o art. 190 da Constituição Federal prevê que lei “regulará e limitará a aquisição ou o arrendamento de propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira”.

O presente artigo objetiva analisar em primeiro lugar quais são as regras para que estrangeiro residente no Brasil e pessoa jurídica estrangeira autorizada a funcionar no Brasil possam adquirir imóveis rurais brasileiros. Posteriormente, se traçará breve resumo sobre a aplicação ou não dessas regras sobre pessoas jurídicas brasileiras controladas por pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras e que residam ou tenha sede no exterior. Por fim, ao final do artigo, se construirá visão panorâmica sobre as atuais discussões políticas de revisão legislativa das mencionadas regras.

1. Regras aplicadas a pessoas físicas e jurídicas estrangeiras

O principal ato normativo que regula a aquisição de imóvel rural por estrangeiro é a Lei nº 5.709, de 7 de outubro de 1971, que estabelece regras que devem ser observadas por estrangeiros residentes no Brasil e pessoas jurídicas estrangeiras autorizadas a funcionar no país. Em função da brevidade que aqui deve se manter, essa análise será tecida com foco nas principais regras estabelecidas na Lei, restando ainda outras não presentemente detalhadas.

O primeiro limite a ser observado por atores estrangeiros interessados em adquirir terras no Brasil é o territorial: a pessoa física estrangeira não poderá exceder o limite de cinquenta módulos rurais de exploração indefinida, contínuos ou não. A área correspondente a um módulo é definida pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), e varia de acordo com as condições econômicas e sociais de cada região. A aquisição de um imóvel com área inferior a três módulos é livre, e a compra de mais de um imóvel inferior a três módulos ou daqueles com área entre três e cinquenta módulos depende de autorização do INCRA.

Outro limite territorial a ser observado é o de que o total das áreas rurais pertencentes a pessoa física ou jurídica estrangeira não pode ultrapassar um quarto da superfície do município onde se situa. Além disso, pessoas de mesma nacionalidade não poderão possuir mais de 40% do limite mencionado acima.

Para as empresas estrangeiras autorizadas a funcionar no Brasil, a aquisição de imóveis rurais só pode acontecer para a implantação de projetos agrícolas, pecuários, industriais ou de colonização. Para isso, esse projeto deverá ser aprovado pelo Ministério da Agricultura, ouvido o órgão federal de desenvolvimento regional da área em que será implementado. Pessoa física também deverá apresentar ao INCRA projeto de exploração na aquisição de imóveis maiores que vinte módulos.

A aquisição de imóveis em áreas consideradas indispensáveis à segurança nacional por pessoa física ou jurídica estrangeira depende obrigatoriamente de autorização da Secretaria-Geral do Conselho de Defesa Nacional, em atenção ao cuidado especial que deve ser dado a essas áreas especialmente sensíveis para a defesa nacional.

Os cartórios de registro de imóveis deverão manter livro especial das aquisições de terra rural por estrangeiro, fazendo nesse livro constar i) menção ao documento de identidade das partes contratantes ou dos respectivos atos de constituição, se pessoas jurídicas; ii) memorial descritivo do imóvel, com área, características, limites e confrontações; e iii) transcrição da autorização do órgão competente, quando for o caso.

Essas informações deverão ser repassadas trimestralmente ao Ministério da Agricultura e à Secretaria-Geral do Conselho de Defesa Nacional, quando se tratar de imóvel situado em área indispensável à segurança nacional.

Além disso, nas escrituras de aquisição de imóvel rural nas situações aqui descritas por pessoa física, deverá constar a) menção ao documento de identidade do adquirente; b) prova de residência no território nacional; e c) quando for o caso, autorização do órgão competente ou assentimento prévio da Secretaria-Geral do Conselho de Segurança Nacional.

Para pessoa jurídica, deverá constar na escritura a transcrição 1) do ato que concedeu autorização para a aquisição da área rural; 2) de documentos comprobatórios de sua constituição e 3) de licença para seu funcionamento no Brasil.

Essas, portanto, as principais regras que se aplicam à aquisição de terras rurais por estrangeiro residente no Brasil ou por pessoa jurídica estrangeira com autorização para funcionar no Brasil.

2. Situação das empresas brasileiras controladas por estrangeiro

Se expôs acima quais as regras aplicáveis a pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras que desejam adquirir imóveis rurais no Brasil. Mas e a situação das empresas que são brasileiras, mas que são controladas por pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras?

A princípio, a própria Lei nº 5.709/1971 oferece a solução para esse questionamento. Isso porque, no §1º de seu artigo 1º, a Lei prevê que fica sujeito às regras acima descritas “a pessoa jurídica brasileira da qual participem, a qualquer título, pessoas estrangeiras físicas ou jurídicas que tenham a maioria do seu capital social e residam ou tenham sede no Exterior”.

Entretanto, entre 1994 e 2010 prevaleceu entendimento contrário a esse, embasado na noção de que a Constituição Federal de 1988 não havia recepcionado esse dispositivo por violação a alguns preceitos constitucionais da nova Carta Magna. Essa noção, presente principalmente em pareceres da Advocacia-Geral da União de 1994 e 1998, compreendia que o dispositivo afrontava o tratamento dado pela nova Constituição às empresas brasileiras, em particular no seu art. 171.

Isso porque o mencionado artigo constitucional, ao definir “empresa brasileira” pela primeira vez em texto constitucional, não haveria criado restrições genéricas à atividade dessas empresas, não podendo portanto ato normativo infraconstitucional fazê-lo. Nessa interpretação, a promulgação da Constituição de 88 havia revogado o §1º do art. 1º da Lei nº 5.709/1971, devendo a essas empresas se aplicar o procedimento geral de compra e venda de imóveis rurais.

No final da década de 2000, contudo, foi surgindo crescente preocupação com a falta de controle governamental sobre as terras rurais adquiridos por empresas brasileiras controladas por estrangeiros. Nas palavras de Rolf Hackbart, então presidente do INCRA, em audiência conjunta das Comissões de Agricultura e Reforma Agrária e Meio Ambiente e de Defesa do Consumidor e Fiscalização do Senado Federal em 2008, onde sustentou que o parecer da AGU de 1998:

(...) permite a ocupação desenfreada de terras em nível nacional por estrangeiros, mascaradas legalmente, com a justificativa de serem adquiridas por empresas brasileiras. Além disso, os serviços registrais entendem não ser necessário a comunicação à Corregedoria da Justiça dos Estados e ao INCRA da relação dessas aquisições. (...) Desta forma, caso haja real interesse no controle de aquisição de imóveis rurais por estrangeiros, no entendimento da Divisão de Fiscalização e Controle de Aquisições por estrangeiros, o parecer da AGU deve ser revisto, uma vez que a redação vigente não permite um controle mais efetivo das aquisições efetuadas por pessoas jurídicas brasileiras com capital estrangeiro.

Após longa discussão pública, técnica e jurídica sobre o tema, a Advocacia-Geral da União emitiu novo parecer vinculante, de nº LA 01/2010, em que divergiu de seu antigo entendimento para entender que o §1º do art. 1º da Lei nº 5.709/1971 havia sim sido recepcionado pela Constituição Federal de 1988.

No documento, a AGU sustentou que a nova Constituição estabelecera restrições genéricas às empresas brasileiras, e que por isso a equiparação de empresas brasileiras controladas por estrangeiros a empresas estrangeiras é perfeitamente constitucional em face da sistemática de normas e princípios instituídos pela carta constitucional.

Desse modo, para que pessoa jurídica brasileira da qual participem, a qualquer título, pessoas estrangeiras físicas ou jurídicas que tenham a maioria do seu capital social e residam ou tenham sede no Exterior possa adquirir imóveis rurais atualmente, ela deve observar todas as regras e procedimentos descritos na Lei nº 5.709/1971, descritos acima.

3. Discussões políticas de revisão legislativa da Lei nº 5.709/1971

A revisão da posição da Advocacia-Geral da União para que as empresas brasileiras controladas por estrangeiros fossem equiparadas às empresas estrangeiras para fins de aquisição de terra não agradou os ruralistas. Nesse sentido, a Sociedade Rural Brasileira (SRB) ajuizou em 2015, no Supremo Tribunal Federal, a Arguição de Descumprimento de Princípio Fundamental (ADPF) nº 342 em face do §1º do art. 1º da Lei nº 5.709/1971 e do mencionado parecer da AGU, ação essa que ainda não foi julgada.

No Governo Temer, o tema teve relativo destaque quando se cogitou editar medida provisória para tratar do assunto. As intenções nesse sentido não se concretizaram e, após breves esforços para se resgatar o PL nº 4059/2012, projeto oriundo de subcomissão especial constituída especialmente para esse fim, o movimento de flexibilização perdeu força.

Após as eleições de 2018, o então presidente eleito Jair Bolsonaro, militar, afirmou que não estava disposto a vender terras agricultáveis brasileiras a estrangeiros, em especial a chineses. Bolsonaro demonstrou preocupação com a segurança alimentar e com a saúde do agronegócio nacional caso isso se concretizasse com maior intensidade.

Em 2019, os esforços políticos para a flexibilização das regras aqui descritas novamente se intensificaram nas vias formais. Nesse sentido, o senador Irajá (PSD/TO), filho da senadora Kátia Abreu (PP/TO), apresentou o PL nº 2963/2019, que “regulamenta a aquisição, posse e o cadastro de propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira”. Essa proposta, quase idêntica ao PL nº 4059/2012, prevê que as restrições nela estabelecidas não se aplicam às pessoas jurídicas brasileiras ainda que constituídas ou controladas direta ou indiretamente por pessoas privadas, físicas ou jurídicas estrangeiras, ressalvados as hipóteses de controle por fundos soberanos constituídos por recursos provenientes de estados soberanos, entre outras.

Após alterações promovidas pelo seu relator, senador Rodrigo Pacheco (DEM/MG) nas Comissões de Assuntos Econômicos e de Agricultura e Reforma Agrária, o projeto atualmente está em discussão na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado Federal. Se aprovado nessa Comissão, o projeto pode seguir diretamente à Câmara dos Deputados, sem referendo do Plenário do Senado Federal.

A ministra Tereza Cristina, da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, já apoiou publicamente a proposta, ressaltando os argumentos de que o projeto pode movimentar o agronegócio brasileiro, atraindo investimentos, sem com isso ferir a soberania nacional.

No Planalto, porém, a proposta encontra resistência principalmente do general da reserva Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional. Os militares, autores da Lei nº 5.709/1971 no período militar, colocam em primeiro lugar suas preocupações com soberania e defesa nacional, tendendo a divergir de propostas que flexibilizem em excesso as regras.

Apesar de pontuais ressalvas, o setor do agronegócio tem se mobilizado intensamente para que o projeto continue a progredir nas casas legislativas. A Sociedade Rural Brasileira, por exemplo, divulgou comunicado em apoio ao PL 2963/2019, sugerindo pontuais correções.

A reação ainda tímida da oposição ao projeto já permite esboçar quais serão as suas principais preocupações com o tema. Por um lado, buscará garantia não só da soberania nacional, mas principalmente da segurança alimentar dos brasileiros. Do outro, trabalhará para que a venda das terras aconteça em condições favoráveis ao Brasil e para que de algum modo as transações beneficiem o país.

O deputado Rodrigo Maia (DEM/RJ), presidente da Câmara dos Deputados, já apresentou reservas em relação ao tema no passado, principalmente com preocupações ligadas à China. Para o deputado, não seria estratégico para o Brasil permitir que o país controlasse as duas pontas da linha produtiva: a terra para a produção de commodities e a aquisição desses commodities.

Resta saber se Bolsonaro, que ainda não se posicionou publicamente sobre o tema após assumir o cargo de presidente, atuará para unificar o seu governo, principalmente a ala militar, em torno da proposta. Caso não o faça, os ruralistas terão que enfrentar os militares, ambientalistas, militantes da terra e outros para que as regras de aquisição de terras no Brasil por estrangeiros sejam flexibilizadas.

4. Conclusão

Ao final do presente artigo, resta evidente que, apesar de não ser recente, a discussão sobre a venda de terras brasileiras para estrangeiros está longe de estar pacificada. Cabe, portanto, acompanhar o desenvolvimento dos debates e prestar atenção próxima à Lei nº 5.709/1971 a fim de que o produtor rural possa manter suas atividades com a maior segurança jurídica possível.

Dal Maso Advogados

Luís Eduardo Magalhães, Bahia. 

Dal Maso Advogados

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